AAFDL


De volta a casa: Francisca Ascenso

1ª Edição: Francisca Soromenho Ascenso

  • Presidente de Direção 2013/ 2014
  • Vice-Presidente de Direção 2012/ 2013

A minha vida profissional depois da faculdade é confusa. Neste momento dou aulas na Faculdade mas também trabalho em freelance onde faço tradução e copy editing; sou jurista na sociedade de advogados do meu marido; tenho uma empresa que produz azeite; estou a começar um negócio imobiliário agora e escrevo para algumas publicações. Faço muitas coisas diferentes e quase todas, felizmente, consigo fazer a partir de casa. Sou uma pura profissional liberal nesse sentido.

Olá, Francisca! Em primeiro lugar, como é que é estar, ainda que remotamente, De Volta a Casa?

“É ótimo! Eu nem consigo dizer-vos o quão feliz eu fiquei quando recebi a chamada ontem a falar sobre este projeto. Receber outra vez um contacto da Associação Académica acho que é uma coisa que nos mantém jovens.

Apesar de eu estar casada com um antigo Presidente da Associação também e muitos dos meus amigos serem ex-dirigentes, os primeiros anos em que se está fora da Associação acabamos por falar muito sobre ela porque continua a ser uma realidade muito próxima. Mas a verdade é que, de alguma forma, isto passa no nosso dia-a-dia e deixa de ser falado, portanto, voltar a ter uma oportunidade mais formal para estar em contacto com a Associação é sempre entusiasmante e algo que nos rejuvenesce.”

Ainda tens contacto com os ex-dirigentes que fizeram parte das tuas Direções?

“Eu fui dirigente em três Direções e acho que quem já esteve na Associação percebe que se fazem muitos amigos e que se criam laços de afinidade também com pessoas que não fizeram parte das Direções das quais fazemos parte. Eu conheci o meu marido na Faculdade quando ele era Presidente da AAFDL e eu era caloira e depois candidatei-me. Isto para dizer que sempre estive ligada de uma forma ou de outra à Associação Académica. Dos nossos padrinhos de casamento, quase metade foram dirigentes associativos. Manter amigos da Associação fora da Faculdade é um alívio porque não tens de explicar a experiência toda que tiveste, que é muito difícil de explicar.

Quando se sai da Faculdade mantêm-se muitos desses amigos e dessas ligações e, no meu caso, acabo por estar sempre em contacto com dirigentes. É uma espécie de maçonaria no bom sentido: ficamos a pertencer a um clube de pessoas que podem não ter feito parte da Associação, mas que gostam dela e que gostam da Faculdade e se envolvem na vida da mesma.

A nossa Associação é tão especial e diferente que só quem por lá passa entende o que é que nos atrai nela, o trabalho que é preciso e os laços que nos unem a todos, também aos funcionários. A continuidade institucional da Associação existe também nas pessoas dos funcionários, no espaço físico, no contacto que tens com os Professores e na própria Faculdade. É uma ligação muito forte e que levamos para a vida.”

Como olhavas para o Associativismo e para a AAFDL, em particular, no teu mandato? E atualmente?

“De certa forma, sair da Faculdade e da Associação, entrar no mercado de trabalho e começar a viver a vida pós-Faculdade faz com que a certeza das nossas convicções e a maneira apaixonada como víamos alguns assuntos do associativismo desaparecem. Eu continuo a ser apaixonada pela Associação Académica e continuo a vestir a camisola.

Hoje, com quase 10 anos de distância, consigo perceber que muitas das convicções pelas quais eu lutava e, apesar de continuar a perceber essas opções, já olho com alguma doçura para a ingenuidade que eu tinha (e que é natural). Algumas das coisas que fiz eram também para mim certezas, mas não é assim: são só opções! Umas envolvem mais risco e outras menos, mas todas eram e são admissíveis.

Ainda assim, eu lembro-me de, quando era dirigente, os antigos dirigentes de mais de uma década acharem que a Associação não era a mesma coisa e sempre achei que o mesmo me fosse acontecer, porque eu sempre vi isso a acontecer. Mas tenho a dizer que isso não me aconteceu. Esse discurso não me faz sentido e tenho todo o respeito e solidariedade para com estes mandatos, principalmente por causa das circunstâncias em que estão e não me consigo imaginar na vossa pele. Deve ser particularmente difícil, numa pandemia, liderar os destinos da AAFDL, especialmente porque é uma mudança total das regras do jogo.

Do ponto de vista da Política Educativa ou Interna, o que tenho visto é a mobilização dos alunos em algumas questões com os Professores, tenho visto os alunos a tomar posições assertivas e, na minha opinião, corretas.

Portanto, as circunstâncias e as situações são totalmente diferentes e não me consigo mesmo colocar nos vossos lugares. Não sei o que é ser dirigente associativa durante no pós 25 de abril, nem durante o Salazarismo e nem sei como é ser dirigente durante uma pandemia. Quem sou eu para julgar?

Acho que a Associação está ótima, continua ativa e só pelo facto de, no meio da pandemia, tentarem vivificar ainda mais com novas iniciativas como esta já acho que é um ótimo indicador da saúde que a AAFDL tem e que se alimenta não só da continuidade institucional, mas também da paixão que é dada pelos dirigentes atuais, por exemplo.

Às vezes fazerem estas pausas e pensarem na história da Associação e nos ex-dirigentes pode ser uma confirmação do bom trabalho de continuação que está a ser feito.”

A propósito de alguns assuntos da nossa agenda política, nomeadamente quanto à Política Externa, temos o objetivo de promover a digitalização do Ensino Superior. Outros dos pontos que estamos a acompanhar são a questão do desemprego jovem, o RJIES e a estrutura do Ensino Superior e do Associativismo. Para além disso, os estudantes internacionais que, sendo uma virtude da nossa Faculdade tendo em vista a disseminação da cultura jurídica portuguesa, têm de ter uma resposta aos problemas que vão aparecendo (pense-se, por exemplo, nos alunos que não têm onde comer). Por fim pretendemos, desenvolver um projeto de responsabilidade social para combater a iliteracia jurídica.

Em particular achas que estas são preocupações relevantes, no panorama atual?

“Numa apreciação geral, acho muito engraçado que, na nossa vida, as coisas sejam cíclicas. A vossa agenda é muito parecida à da Direção de 2007, mas acho completamente diferente da minha.

O meu mandato teve o problema da gestão profissional da Editora, e foi esse um dos pontos que mais atenção mereceu da nossa parte. Tínhamos também um contexto político interno com gravíssimos problemas, por termos docentes contra alunos e por ter sido nessa altura que as relações entre os docentes se fraturaram. Tenho pena de não ter conseguido parar para respirar fazer Política Externa, mas não havia grande pressão e urgência para nos unirmos nacionalmente contra assuntos específicos, estávamos mais à procura de retomar a “programação normal”, pelo que também não existiu essa urgência e tínhamos que estabelecer prioridades.

Mas é engraçado que a digitalização já era algo que vinha do mandato do Bruno Pereira, com as preocupações com o E-Learning e com o Moodle. Hoje a pandemia evidenciou algumas das deficiências da nossa Faculdade ao nível da digitalização, pelo que acho importante que se continue a investir nisso e faz todo o sentido num ano como este.

Quanto ao desemprego jovem, na altura não era a AAFDL que estava a liderar esse debate, mas sim a instituição FDUL, com a qual colaborávamos ativamente, mas acho muito bem que agora assim seja porque esse problema vai-se agravando cada vez mais. O mercado de trabalho agora trata os jovens com muito menos respeito do que no tempo dos meus pais e isto é algo que só vai piorar e a pandemia só vai intensificar isso.

Em relação ao RJIES, essa era uma preocupação antes de eu entrar na Faculdade, até porque a própria AAFDL foi parte ativa nesse processo e a AAFDL Editora, inclusive, editou um livro sobre esse tópico: o Livro Branco. No entanto, entendo também que as sugestões dos estudantes não foram devidamente ouvidas, pelo que percebo a discussão do assunto.

Acho também muito importante a Faculdade internacionalizar-se, sendo esta uma preocupação minha já há algum tempo, nomeadamente ao nível do programa Erasmus. Quanto aos estudantes internacionais, existiam e continuam a existir alguns problemas, mas esses problemas eram tratados muito ao nível dos “bastidores”. Acho que a Faculdade sempre teve sensibilidade para isso, mas sim, acho que é um problema. Cada vez mais me preocupa o facto de dizermos que somos “a melhor Faculdade de Direito do país” e de sermos gozados, porque é algo pelo qual lutámos e temos de continuar a lutar, mas que cada vez mais pode ser posto em causa.

Quanto à iliteracia jurídica sempre foi algo que me preocupou, até mais cívica e politicamente, mas acho muito bem que se mobilizem nesse sentido, porque a AAFDL poderá ter um papel importante nisso. Acho muito bem que a AAFDL se vire mais para as preocupações do país e acho ótimo que sejam ambiciosos.”

A propósito da Política Externa e, tendo em conta o facto de existirem em Lisboa várias estruturas federativas, qual achas que é o papel e espaço da AAFDL? Achas que o facto de coexistirem tantas estruturas a representar as mesmas causa é positivo para os estudantes de Lisboa e, em particular, para os nossos estudantes?

“É realmente algo que as várias Direções da AAFDL têm dito sucessivamente, desde há 20 anos atrás, até alguns dirigentes que já nem estão entre nós

A minha Direção teve essas preocupações e, ao acompanharmos a fusão da Clássica com a Técnica de Lisboa, tivemos também a preocupação já antiga de juntar as várias Associações à mesa e a fusão era o contexto ideal para o fazer, uma vez que, se as unidades orgânicas já estavam juntas e se já éramos todos Universidade de Lisboa, então tínhamos de o fazer. A nossa Direção achou que ia resolver o assunto, mas não conseguiu, assim como a maioria das últimas Direções e, com isto, este assunto tem-se vindo a arrastar.

Talvez esteja a ser injusta, mas os engenheiros nunca se quiseram verdadeiramente encontrar connosco e não queriam ceder nem um bocadinho. Julgo que sempre tiveram medo de que a AAFDL, que é grande, barulhenta e tem inúmeras personalidades ligadas aos destinos do país, lhes desse pouca preponderância num projeto em que estivéssemos sentados de igual para igual. No meu mandado chegámos a discutir modelos desta fusão, mas queriam basear-se no sistema americano, de duas câmaras, pelo receio de que várias Associações votassem em bloco e nunca se conseguiu passar desta discussão. Mas a AAFDL não queria lixar o Técnico. Apenas acreditávamos que, a partir do momento em que estivéssemos todos juntos, teríamos também outra força, mas acabou por ir cada um para seu lado.”

Hoje é Dia da Mulher e tu foste a última mulher Presidente de Direção da AAFDL.

Como sabemos, ao longo de mais de 100 anos de história, a AAFDL teve apenas 3 Presidentes mulheres. Na tua opinião o que é que explica isto? Na tua Presidência, o facto de seres mulher alguma vez teve uma influência negativa na condução dos trabalhos ou na forma como te ouviam e respeitavam? E na tua candidatura?

“Vivemos numa sociedade bastante machista e, tal como costumo dizer, a Faculdade de Direito é tudo aquilo que a sociedade é, mas ao extremo. Felizmente, acho que a Faculdade é cada vez menos machista, a todos os níveis.

Apesar de achar que existe uma dimensão biológica do sexo e do género, eles são uma construção social, tal como tudo aquilo que acontece em sociedade, nomeadamente, todas as nossas relações interpessoais. Os papéis de género na Faculdade mantêm-se.

Na Faculdade de Direito há mais alunas do que alunos e as mulheres têm tipicamente melhores resultados académicos. A nossa Faculdade é muito exigente a nível académico, pelo que acho que muitas alunas também se focam mais em estudar. Para além disso, a nossa Faculdade é muito agressiva, assim como o ambiente da vida académica. Por essa razão, as pessoas têm que ser um bocadinho assertivas. E, acreditando ou não que há uma dimensão biológica nisto tudo, é um ambiente muito pouco natural para a maior parte das mulheres se sentir confortável e sentir que tem uma voz.

O meu “cargo-fetiche” da AAFDL sempre foi o de Secretária, mas o que sempre me irritou era o facto de esse cargo ser sempre atribuído a uma mulher, normalmente bonita, sendo isso redutor daquele que é o potencial e a importância do cargo – tem uma importância fundamental na gestão do dia-a-dia, a gerir e a traçar o funcionamento interno da Direção. No entanto, o cargo nunca foi construído assim.

Eu tive a oportunidade de ter Secretárias fabulosas, a começar pela minha, a Joana Zagury, passando também pela Maria Fonseca – tive vários exemplos femininos muito poderosos em vários cargos da Direção da AAFDL, falando inclusivamente de uma pessoa que todos conhecemos, a Margarida Balseiro Lopes, que foi Tesoureira da AAFDL e que foi uma dirigente extraordinária. Mas eram muito poucas! E havia umas que eram para cumprir uma certa “paridade formal” nos órgãos da AAFDL.

Pior do que a Direção, talvez seja mesmo a Mesa da RGA… acho que nunca conheci um Presidente de Mesa que fosse mulher, porque precisas de alguém imponente e assertivo, mesmo fisicamente! É preciso alguém que imponha respeito, mas pensa-se nas mulheres como alguém mais “suave”. No entanto, a verdade é que há mulheres imponentes e homens suaves e há pessoas adequadas para todas estas coisas. 

A construção social de como os papéis de géneros são vividos alienam as mulheres dos cargos de direção em geral – das empresas, da política nacional e dos cargos de Direção da AAFDL.

Nós quando desenhamos quem vai preencher os lugares dos órgãos sociais da AAFDL, pensamos de alguma forma nas características físicas. Lá está, a questão do Presidente de Mesa… Nos Secretários, pensamos em alguém mais suave.

Eu não me considerava feminista até ter tido uma experiência na AAFDL na qual fui obrigada a refletir relativamente àquilo que é ser mulher na Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa. E, mesmo sem intenção, senti da parte de alguns amigos meus dirigentes algumas micro-agressões por causa de género, mas algo pequeno e sistémica. Por exemplo, por vezes, quando existiam cerimónias da AAFDL (apresentações de livros, por exemplo), pediam-me para ser mestre de cerimónia e eu sabia que era por ser mulher. Eu sabia que não tinha apetência nenhuma para essa posição, mas pediam-me por ser mulher. E não culpo, porque nós somos produto da sociedade em que vivemos e também é um defeito da nossa cultura.

Eu comecei a reparar nessas coisas. Mas aquilo que me converteu 100% à causa feminista foi um episódio com um Professor que, no dia seguinte a ter sido eleita Presidente da AAFDL, numa reunião do Conselho de Escola, se referiu à minha eleição como a eleição de uma “mosquinha morta”. Ele nunca me tinha conhecido, nunca me tinha ouvido falar e fez esse comentário publicamente com muitas pessoas presentes, inclusivamente alunos. Também fez alguns comentários do mesmo género no Conselho Científico. E, sempre que eu estava num painel com ele fazia uma coisa extraordinária (e imagino que ainda a faça hoje em dia): ia cumprimentar sempre os homens, dizendo “Parabéns! Espetacular! Adorei a sua intervenção.”, mas quando falava com as mulheres, fosse eu ou qualquer outra mulher que estivesse dizia sempre “Está tão gira hoje! Está mais magra!”. Eu vi isto repetidamente em todos os painéis em que estive com ele. Com as mulheres remetia sempre para a parte física! Não digo que seja feito com maldade, mas o Professor não é “estúpido”, portanto não admito que seja totalmente inocente. É boa pessoa, mas isto acontecia!

Outra coisa: a minha Direção foi uma lista de união e, apesar de ter havido oposição, não era uma verdadeira oposição. Durante a campanha e, liderado pelo meu Presidente de Mesa, surgiu um movimento de alguns alunos que não estavam tradicionalmente ligados aos órgãos sociais da AAFDL, mas que viviam muito a vida da Escola. Na chamada “pré-campanha”, começaram a questionar o rumo das coisas e a fazer uma lista – tudo isto em jogos de bastidores, inclusivamente com o meu Presidente de Mesa. Esse movimento acabou por não resultar em nada, mas eu confrontei-o e disse-lhe que não o demitiria, mas para ele se demitir se tivesse essa coragem! Não o fez e fez-me a vida num inferno, mesmo depois de eu o ter confrontado.

Eu concorri sem grande oposição e, como acaba por ser normal, houve muitos votos nulos. E a propósito destes votos nulos, surge uma história muito estranha: muitos deles diziam que eu era bruxa…. Sim! Surgiu um boato na Faculdade que dizia que eu era bruxa e as pessoas acreditavam mesmo nisto! Porque eu tinha muita sorte, a vida corria-me bem, tinha boas notas, eu era gorda e tinha um namorado giro, hoje meu marido, o João Ascenso – só podia ser porque eu era bruxa! Havia inclusivamente a teoria de que, quando fui estudar Filosofia e Relações Internacionais para a Escócia, me tornei mesmo bruxa. Havia até o mito de que eu tinha um colar preto, onde tinha a magia!

Então quando fui eleita, grande parte dos votos nulos faziam referências a esse boato de eu ser bruxa. Curiosamente, eu nunca experienciei muito a “gordofobia”, porque eu nunca pensei em mim como uma pessoa gorda.

Contar esta história da bruxa que, hoje, dá para rir, na altura, deixou-me muito magoada! Sinto até que houve muito machismo em chegar a essa conclusão: se ela é líder, se a vida lhe corre bem, se tem boas notas, entre outras coisas só pode ser porque é bruxa! Ela não merece, não há nada objetivo que a faça merecer… Porque as mulheres só podem merecer as coisas se forem bonitas e eu, baixa e gordinha, não sou uma pessoa sexy, logo, se não subi horizontalmente só podia ter sido porque era bruxa!

A junção destas três coisas, do machismo de alguns Professores, ter tido micro-agressões machistas de colegas e grandes amigos meus durante a Associação Académica e, depois, quando me tornei Presidente ter surgido este fenómeno que dizia que eu era uma bruxa (tornaram-me numa bruxa!) … Na Idade Média, não tenho a menor dúvida que tinha sido posta numa estaca e tinha sido queimada! É sinistro, mas é verdade. No século XXI, em 2013, havia uma grande parte da Faculdade que tinha a convicção que eu era uma bruxa, porque não havia outra razão para a vida me correr tão bem. Isto deixa-me surpreendida! Recordar-me disto deixa-me envergonhada de ter feito parte desta história de alguma forma.

Havia um total descrédito pelas valências pessoais e individuais das mulheres, tinha de haver sempre alguma razão que não o mérito. Mas espero e acredito que com a vossa geração as coisas estejam melhores, porque vocês são melhores do que nós! Enquanto um homem é livre, no caso das mulheres o sucesso tem sempre que ter uma outra razão. No meu caso, era ser bruxa.”

Mas sentes que as coisas melhoraram, que houve alguma inversão nesse tipo de comportamentos?

“Sim, sinto. Como disse, a vossa geração é melhor que a nossa e, desde que saí da Faculdade, a sociedade foi marcada por um crescimento do discurso feminista na praça pública e quero acreditar que eu, de alguma forma, também fiz parte desse movimento.

Mas acho que o feminismo, tal como ele é falado em Portugal, peca por ser um feminismo branco e privilegiado, que ignora as realidades das mulheres que são pessoas racializadas, das mulheres emigrantes, das mulheres pobres, das pessoas portadoras de deficiência, das pessoas da comunidade LGBT, principalmente, as mulheres trans. Claramente o feminismo em Portugal continua a ser um feminismo branco e privilegiado e que não olha a outras realidades. E na Faculdade também é assim. Noto que as minhas alunas, por exemplo, já falam abertamente sobre isso, mas ainda não falam do facto de não ser um feminismo interseccional como ele devia ser. Mas, de modo geral, melhorou e acho que a AAFDL, naturalmente, se vai tornar permeável a isso. Mas ainda vai demorar…. Contudo, podemos todos ter um papel nisso, só a estarmos aqui a ter esta conversa já estamos a contribuir.

Eu nunca pensei na candidatura a Presidente dessa forma, nunca pensei que por ser mulher seria desadequado ou que teria maiores dificuldades. Aliás, essa conversa surgiu, principalmente, de pessoas de fora e fez-me também refletir.

Mas eu percebo que para uma mulher que tenha essa vocação (porque mais do que uma motivação é uma vocação), essa reflexão seja feita… Não tinha essa perceção ao início!

Acho que todos temos um papel a combater este problema, porque, de facto, as duas coisas são muito redutoras: as mulheres não ocuparem tradicionalmente os cargos de liderança e os homens não ocuparem alguns cargos também, tradicionalmente, como o papel de Secretário. Não faz sentido haver um cargo que seja ocupado por uma mulher apenas porque fica bem.”

O que é que achas que a AAFDL pode fazer de forma a garantir que esta tendência se inverta e que haja uma efetiva participação e ocupação de cargos de liderança por parte de alunas?

“Eu, academicamente, tenho muito trabalho feito sobre isso. Eu sou a favor de quotas de género. Normalmente, investigo isto sobre Conselhos de Administração, não propriamente a propósito da Associação Académica… Teria de pensar sobre isso.

Mas é um discurso que tem de ser tido. Olhando para as Professoras que temos na Faculdade, seria pertinente fazer conferências sobre feminismo e Direito.

Individualmente, os titulares dos órgãos atuais devem fazê-lo também, têm esse dever de empoderar as mulheres que trabalham com eles. E a mesma coisa com as próprias mulheres, não podem ser só os homens a empoderar as mulheres, as mulheres também têm o dever de se empoderar umas às outras e de o fazer continuamente. Eu tentei fazê-lo deliberadamente no meu mandato e acho que é uma coisa que deve continuar a ser feita.

A convicção de que tem de ser necessariamente um homem é algo que até os próprios alunos pensam, por conhecer a realidade da AAFDL, que é uma realidade em que nós, sendo “putos”, vamos tentando falar com professores que nos tentam infantilizar, com profissionais da Editora que já têm muitos anos de carreira e tentamos fazê-lo de igual para igual, por termos a cargo a gestão da AAFDL. E às vezes ser mulher ainda piora a situação da infantilização.

Eu tinha, por exemplo, muito cuidado com o que vestia… Todos os Presidentes de Direção andam, normalmente, de camisa. Eu quando fui Presidente estava sempre de vestido, de collants, ou seja, vestida de forma modesta… São muitas as coisas em que as mulheres têm de pensar, vestir de forma séria e profissional, mas não nos podemos dar ao luxo de ser sexy para não cair na outra falha. É horrível, perdemos muita liberdade quando queremos ser levadas a sério, temos muito pouca liberdade sobre aquilo que podemos vestir. Eu gostava que um dia o mundo, profissional e associativo, não fosse assim.

Se nós enquanto alunos e Direção da AAFDL estamos sempre a tentar que nos levem a sério, as mulheres têm um ónus redobrado que é pesado nesse aspeto.”

No dia a dia, sentias que, de alguma forma, por seres tu a apresentar a posição dos alunos que isso influenciava?

“Alguma linha dos docentes subestimava-me por ser mulher, mas isso também funcionou em meu benefício várias vezes. Uma ameaça que se subestima, geralmente, bate com mais força e às vezes isso aconteceu.

A nível profissional, dos destinos empresariais da AAFDL não, as pessoas todas com as quais trabalhámos foram muito profissionais. Por exemplo, na organização das festas, os fornecedores, os seguranças, etc. estavam todos muitos assustados por eu ser mulher, achavam que eu não ia ter mãos para aquilo. E ficaram surpreendidos pela positiva e correu tudo bem quando passou aquele constrangimento inicial em que eles não sabiam como é que se ia passar, o trato e a linguagem, eles tinham medo.

Quanto aos alunos e à minha própria Direção… A minha Direção fraturou em duas listas, que replicavam as duas listas de onde ela veio (a minha e a outra) e fraturou também motivada por aquela tentativa de oposição que me fizeram ainda durante a campanha, mas que acabou por sair gorada. Mas essas as pessoas que estavam a tentar fazer uma tentativa de lista de oposição a mim e que acabaram por não fazer, envenenaram algumas pessoas da minha Direção. Ainda assim, a oposição interna que eu tive da minha Direção nunca foi motivada explicitamente por eu ser mulher, apesar de algumas raízes das razões pelas quais essa oposição surgiu terem sido essas, a questão da bruxa, etc. Mas diretamente das pessoas, não e na minha cúpula então claro que não. Os dirigentes com os quais eu trabalhava de perto, os funcionários e mesmo os Professores que trabalhavam comigo nos Órgãos nunca foram minimamente machistas comigo, pelo contrário, quando havia Professoras sentia alguma solidariedade acrescida por ser mulher de uma forma que só hoje percebo, porque, profissionalmente, é difícil ser mulher, mas de modo geral nunca senti que influenciasse negativamente. Acaba sempre por influenciar um bocado, há sempre alguns preconceitos sobre a forma como nos devemos vestir, para nós mesmas e para os outros, mas não foi algo que tenha deixado uma mancha muito grande, à exceção destes pequenos incidentes.”

E que conselhos darias aos dirigentes do futuro?

“Não deixem que vos infantilizem. Há muito a tendência de menorizar os estudantes na Associação Académica, porque somos novos, o que tem muitas virtudes.

Vocês estão aí porque passaram por um processo democrático de eleições, por isso merecem estar nos cargos que ocupam. Vocês têm capacidade para ocupar e desempenhar as vossas funções o melhor que sabem e o melhor que sabem é e vai ser suficiente. Vocês são os melhores dirigentes que a Faculdade podia ter agora e foi por isso que vos escolheram.

Às vezes há muito a tendência para, em eleições pouco participadas, de colocar em causa a vitória de certa lista… Não acho que assim seja, quem ganhou ganhou, é o que a Faculdade merece e precisa.

Não deixem que ninguém vos infantilize nunca. Tenham confiança e segurança para tomar as decisões que têm de tomar. Tomem as decisões, mesmo que não estejam seguros, porque se perde eficiência a tentar saber toda a informação… por vezes, o melhor para a Faculdade e para os alunos é a decisão estar tomada, mesmo que não seja a solução perfeita.

E divirtam-se! Passa tão depressa e é o melhor momento da nossa vida!”

Numa palavra, a tua passagem pela AAFDL foi…

“Vou usar a minha palavra de campanha, que era “Leais à Academia”. Lealdade. Entre nós houve sempre muita lealdade institucional, entre nós dirigentes, mas também com os funcionários, com os estudantes, com os Professores, quando nos uníamos por uma causa, com a Universidade de Lisboa…. Foi um mandato de profunda lealdade institucional e em que conseguimos comprometermo-nos com aqueles que foram os nossos princípios e ideias. E acho que lealdade, também na altura não foi por acaso. Acho que é uma palavra que tem caído em desuso, mas que tem presente ideias que são muito importantes e que para mim foram muito importantes ao longo o mandato.”

 

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